Reportagem veiculada no jornal Valor Econômico tratou do movimento adotado por algumas empresas, como o Magazine Luiza, que abriu um programa de trainees exclusivamente para candidatos negros. O Dr. Carlos Navarro, sócio de Galvão Villani Navarro Advogados, foi ouvido para comentar o assunto.


Programas de trainee e mentoria buscam inclusão para negros
Companhias realizam ações para minimizar desigualdade racial em seus quadros
Por Barbara Bigarelli — De São Paulo
24/09/2020
Ao longo de 15 anos de programa de trainee, a Magazine Luiza formou cerca de 250 trainees. Só 10 eram negros. Começar a mudar esse cenário em 2020 não foi apenas uma questão de inclusão social.
Foi principalmente uma decisão de negócios, segundo Patrícia Pulga, diretora de pessoas da companhia.
“Para o Magalu, uma empresa que prega o valor estratégico da diversidade para o negócio, seria um absurdo ignorar o problema”.
Um relatório recente da consultoria McKinsey com instituições financeiras aponta que para cada aumento de 10% na diversidade étnica e racial do time sênior há uma alta de 1 ponto percentual no Ebit.
No quadro geral da Magazine Luiza, conforme constatou em um censo interno em 2019, 53% dos funcionários são negros, mas apenas 16% estão em postos de liderança. “Poderíamos ter feito um programa de estágio só para negros? Seria legítimo também. Mas optamos pelo trainee porque é notório que é um canal de entrada com status diferente. É por meio dele que alçamos, de forma mais acelerada, jovens profissionais talentosos à lideres”.
A Bayer também quer dar esse salto mas, ao criar o programa de trainee exclusivo para negros, com 19 vagas, estará aplicando lições aprendidas nos últimos anos com iniciativas para a inclusão de estagiários e analistas juniores negros. Atualmente, dos 430 estagiários da companhia, 120 são negros. “Esse programa de trainee não é uma decisão da noite para o dia e é fruto de ações que a gente vem trabalhando nos últimos anos para criar uma trilha de desenvolvimento para profissionais negros e o ambiente mais inclusivo possível”, diz Maurício Rodrigues, vice-presidente de finanças da Bayer Crop Science.
Entre as ações estão o treinamento de líderes para receber diversos perfis e um programa recente, criado pelo grupo étnico-racial de funcionários BayAfro, de mentoria a jovens negros.
Na Magazine Luiza, a liderança também foi treinada para a seleção e acolhimento dos trainees negros e, assim como a Bayer, dispensou o teste de inglês. “Não houve qualquer mudança quanto aos crivos de seleção: trabalhar duro e forte identificação com nossos valores. A seleção será absolutamente meritocrática”, diz Patrícia. Na Bayer, a seleção priorizará “valores que ajudam a ser uma empresa mais inovadora e que vêm principalmente de pessoas que são questionadoras”.
Um dos desafios desse tipo de seleção, segundo a 99Jobs, empresa que auxilia a Magazine Luiza, foi garantir que a campanha do programa se comunicasse com o público negro e pardo e eles se sentissem atraídos para se inscrever. “Dos cerca de 300 processos de trainee atuais, 99,2% dos aprovados são brancos. Os negros que estão participando dificilmente têm um amigo negro para perguntar o que é ser um trainee ou como é esse programa”, diz Eduardo Migliano, cofundador da 99.
Os programas geraram imensa repercussão nas redes sociais nos últimos dias, de elogios entusiasmados à críticas pontuais. O Magazine Luiza, em particular, foi alvo de questionamentos por parte de uma juíza do trabalho que afirmou que o programa seria discriminatório ao priorizar candidatos pela cor da pele.
Para advogados ouvidos pelo Valor, o programa está exatamente em linha com a Constituição Federal, “que tem por espírito defender a isonomia com vistas a reduzir as distorções e desigualdades sociais”, como estabelecem os artigos 5º, caput, e o artigo 170, inciso VII.
Dados do PNAD/IBGE divulgados em agosto, indicam que a taxa de negros desempregados é 71,2% maior do que a de brancos. “Logo, a ação do Magazine Luiza não poderia ser caracterizada como discriminatória ou racista, já que o que eles pretendem é exatamente tornar mais justa e menos desigual a desproporcional taxa de desemprego entre brancos e negros” , diz Helder Moroni, sócio do PMMF Advogados.
O advogado Carlos Eduardo Navarro, do escritório Galvão Villani Navarro, também afirma não haver ilegalidade ou inconstitucionalidade. Até porque está em vigor o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 2010), que em seu artigo 1º, já se diz destinada a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades. “A população branca não precisaria de uma lei dessas porque as oportunidades se mostram muito mais abundantes há muito mais tempo”, diz.
Ter um quadro de funcionários que reflita a diversidade da sociedade brasileira também é a razão que levou a Diageo a criar ações afirmativas, metas de inclusão e lançar, neste mês, um programa de contratação e desenvolvimento de seis profissionais negros. Os aprovados terão mentorias, coach e workshops e curso de idioma. “A ideia a médio e longo prazo é formar profissionais preparados para alcançar a liderança”, diz Daniela de Fiori, diretora de relações corporativas. A Diageo tem 54% de negros em seu quadro, mas em cargos de vendas, administrativos e liderança, o número é de 18%.
Já a Oracle diz que criar um programa de estágio ou trainee exclusivo para negros é possível em um futuro próximo, mas nesse momento está focada em criar “ações transversais de inclusão”.
“Não adianta apenas lançar o programa se a marca Oracle não é percebida como inclusiva para negros e se não há uma estrutura sólida para desenvolver esses profissionais e eles se sentirem acolhidos para permanecerem no longo prazo”, diz Daniele Botaro, head de diversidade e inclusão Latam.
Entre as ações transversais realizadas, está o programa geral de recrutamento às cegas, que não avalia pela idade, gênero, cor e escola, e o programa “Desafiando as Estatísticas”, onde a empresa convida talentos negros a conhecer a Oracle e conversar com executivos. “Só esse programa já nos ajudou a aumentar em 20% o número de negros em oito meses”.
Na Unilever, que abriu inscrições nesta semana para seu programa de trainee, a inclusão racial é uma prioridade na seleção, segundo Luciana Paganato, VP de RH. Ela cita que na edição anterior, os programas de trainee e estágio tiveram os maiores índices de inclusão racial: 22% e 40%, respectivamente. Da porta para dentro, a executiva cita que há o investimento em ações afirmativas, de conscientização e apoio ao desenvolvimento dos talentos negros.
A Ambev, que já encerrou as inscrições da seleção de trainee deste ano, dispensou pela primeira vez a exigência da fluência em inglês e focou menos em “alto nível de habilidades técnicas” e mais em “experiências pessoais e identificação com a cultura”. O objetivo era atrair um público mais diverso, segundo Carla Crippa, VP de relações com a Sociedade. A empresa não pretende criar uma versão do programa exclusivo para negros porque nesse ano lançou um programa de estágio incremental. “Contratamos 108 estagiários negros que serão treinados e capacitados para que, se tiverem interesse, concorram ao trainee”, diz Carla. A empresa assumiu o compromisso de contratar 60 trainees negros nos próximos três anos.
Na hora de criar programas de inclusão racial, Alessandra Benefito, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Mackenzie e consultora em estratégias de inclusão, defende três cuidados. “Crie um plano de ações a curto e longo prazo. Preocupe-se com quem já está lá, ouvindo negros e não negros sobre o andamento das ações e as relações de trabalho. Não deixe que a minoria chegue à liderança isolada”.
Na visão de Gilberto Costa, executivo negro do alto escalão com 26 anos de experiência no setor financeiro, programas de trainee exclusivos são fundamentais. “Hoje já temos um grande número de negros em áreas de suporte, call center, operacional e tecnologia. Mas precisamos deles na área de negócios. Cliente precisa se sentir confortável tendo reunião com diretor comercial negro, advogado negro, gerente de produtos negro. Enquanto esse cliente só tiver diretores branco não vai entender que há diversidade”.
Rodrigues, da Bayer, concorda. “Um jovem negro da periferia nunca vai ter dúvida de que pode ser bom jogador de futebol porque tem referência. Mas executivo ou gerente não”, diz. Fez diferença em sua vida ter referência dentro de sua família, com pais com formação universitária e boas condições de estudo. Mas sempre sentiu a “síndrome do filho único”, sendo a única pessoa negra em tudo que fez na carreira. “Não tinha com quem conversar em muitas situações profissionais e, se tivesse um programa de trainee desse na minha época, talvez me sentisse melhor inserido”. (Colaborou Adriana Aguiar)